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sábado, abril 14, 2007

"Não quis fazer da folha de papel o meu espelho...”

Não quis fazer da folha de papel o meu espelho. As letras que escrevia não tinham mais sabor a verdade do que a ficção que costumo ler nos horóscopos. Ou pelo menos gostava de pensar que assim o é. Ainda assim e sem saberes, insistias periodicamente em olhar por cima do ombro. Discretamente, como a educação obriga, procuravas duas palavras que fizessem sentido, um verbo que indicasse o caminho para a tua compreensão, um adjectivo que caracterizasse a tua percepção do texto.

Eu não parava de escrever por isso. Não parava quando te sentia aproximar mais. Abrandava somente! Deixava que o fluir das palavras fosse comprometido pelo teu respirar no meu ombro.

- O que estas a escrever? – perguntavas-me tu.
- Nada de especial – e fingia olhar para o infinito como se procurasse as palavras que me faltavam. Que fingia me faltar!

Agora, com o caderno em cima das pernas e com o fundo da caneta na boca, já percebias a deixa. E largavas disparada para a minha frente:
- É segredo?
- Por enquanto... - e fazias aquele ar de criança contrariada a quem não se dava o brinquedo.


Respondi-te à letra: - Se te portares bem depois partilho contigo.


Remédio santo. Nem pestanejaste. Assumiste o compromisso silenciosamente e saíste rápido. Ficou só o teu perfume no ar. Procurei-o um pouco. E um pouco mais. Fechei os olhos por momentos e ainda te senti ali. Atrás de mim, o respirar no meu ombro, o sorriso nos lábios, o saber que me amavas como nunca tinha sido amado jamais.


Caneta em mão retomei o caderno à posição inicial. Refiz a leitura da obra produzida. Era ficção sem dúvida! Recuperação de tempos que existiam em noites de sonho tão somente. Coisas felizes que procurava oferecer a mim próprio, mas que caiam sempre no rol das divagações melancólicas.


Com a obtusidade de censor assumido, crítico de mim mesmo, passei um risco diagonal por todo o texto, libertando-me da escrita recente e desbravando caminho para uma nova divagação.
E agora, em campo aberto, respirando fundo, sempre contigo na mente, libertei de novo a caneta em acto de bravura e comecei pela terceira vez:


"Não quis fazer da folha de papel o meu espelho...”



excerto retirado de um livro ainda não editado... "Em busca de mim" by H.M.